sábado, 20 de junho de 2020

MINHA JUVENTUDE



“Somos tão jovens...não tenho mais o tempo que passou...mas tenho muito tempo...temos todo tempo do mundo...temos nosso próprio tempo...nem foi tempo perdido...não temos tempo a perder...somos tão jovens...” (Música Tempo Perdido, Legião Urbana - autor Renato Russo)

O despertar da consciência é gradual, por isso na juventude somos tão destemidos, atrevidos e inconsequentes, mas quando temos mais passado do que futuro olhamos para trás e desejamos a coragem que perdemos no caminho.

Nossos olhos não conheciam o caminho, não havíamos caído ao longo da estrada e, por isso, não temíamos os perigos, nos lançávamos na vida sem paraquedas, sem pavores ou fobias, apenas sentíamos a vida pulsar intensamente em nós. Nos sentíamos poderosos, imbatíveis e imortais.

O tempo parecia estacionado nos aguardando terminar tudo o que havíamos começado e, nos motivava pela longevidade infindável que ainda tínhamos de juventude. Podíamos desperdiça-lo a vontade que sempre sobraria muito tempo para o futuro.

Éramos fortes, poderosos, tínhamos disposição e vigor; nossos corpos eram perfeitos com músculos moldados pela malhação diária na Academia Spartakus, onde nos reuníamos três vezes por semana com os amigos e passávamos de duas a três horas trabalhando nossos bíceps, tríceps, dorsais, trapézios, costas, vastos externos, coxas, peitorais e panturrilhas. Pura diversão!

O espelho refletia a força da juventude e o poder da obstinação; as baladas, chamadas discotecas eram pontos de encontro, o segundo degrau noturno, já que os barzinhos vinham primeiro e, depois o final da noite ou o amanhecer, que poderia ocorrer no Poli Esportivo vendo a aurora ou acasalados dentro dalguma hidromassagem com teto móvel de algum motel de estrada. 

Outras noites participávamos de alguma equipe de karatê do Dojô e passávamos a noite em kumitê (combate) no Poli Esportivo, lutando individualmente e em equipe. Bons tempos, preciosas lembranças!

No início do inverno caminhávamos pela cidade em meio a neblina que nos impedia de enxergar mais do que dois metros à frente, enquanto isso rolavam altos papos, que chamávamos de “cabeças”, com isso significando que eram conversas filosóficas e existenciais. Andávamos, andávamos e conversávamos, desfrutando do espetáculo das noites francanas congelantes.

Ao chegar as férias de julho era época da fazenda, de reunir o gado para a vacinação anual ou de beber leite com conhaque tirado diretamente da teta da vaca. Lembro-me da Flika, a égua superpoderosa que me acompanhou nas mais diversas aventuras campestres. Brava e indomável, machucou muitos cavaleiros, mas eu a amava, talvez por isso nunca me derrubara.

As tardes eram recheadas com piscina, cavalgadas e tiro ao alvo, ganhava quem conseguisse arrancar o fundo da garrafa deitada com um tiro. A bala tinha que passar pelo bico da garrafa e atingir o fundo sem atingir mais nada. As Winchesters tinham lunetas, já as carabinas e cartucheiras, não, o que tornava essa façanha impossível. Já os revólveres e as pistolas eram para tiro em latas ou lâmpadas. Depois entrávamos e íamos para o quarto de som para ouvir Rita Lee, Tavito, Bee Gees, Queen , Beatles, Carpenters, A-Ha e outras preciosidades da época.

Retornávamos às aulas e a maior diversão era o Rock in Roller, a melhor pista de patinação da cidade, um lugar incrível, todos os jovens se reuniam lá. Você poderia alugar um par de patins ou mesmo levar o seu. Meu irmão, Mauro, era o D.J. e não tirava os patins dos pés, era seu meio de transporte, até mesmo na escola, Colégio Objetivo, ele os usava.

A energia do ambiente era contagiante, uma grande pista com iluminação e som de boate, arquibancadas, bares, loja de patins e equipamentos. Gente bonita, juventude e suor.

Quando a insônia tentava nos atormentar, podíamos vestir nossos patins e partir para a pista que ficava aberta até a madrugada e, surpreendentemente, encontrávamos várias pessoas conhecidas patinando como se o mundo fosse acabar em diversão.

Em dezembro, passávamos metade das férias em São José do Rio Preto, para onde meu amigo Walder se mudou quando seu pai, um desembargador rígido, se aposentou.

Em meio aquela riqueza e sofisticação toda, a estratégia era participarmos dos desfiles de carro na Av. Albert Andaló, assim conseguiríamos sermos vistos para depois partirmos para a pista de patinação no gelo.
Ao anoitecer era hora de degustarmos os vinhos caríssimos da adega Dr. Walder, descíamos com ele para adega que ficava embaixo da casa e ouvíamos as histórias das safras que possuía, a idade de cada preciosidade que havia lá e seus comentários cultos.

Quando chegava o carnaval extrapolávamos no Clube de Campo da Franca, bebíamos até cair e cheirávamos lança-perfume a noite toda ou, íamos pular o carnaval em Pedregulho ou Igarapava para arrumarmos brigas e testarmos se as técnicas das artes marciais funcionavam realmente. Nessa época a filosofia das artes marciais se perdera e, praticamente ninguém, queria saber a essência da arte da guerra, mas tão somente se as técnicas eram eficazes nas brigas de Rua.

Há um contraste gritante entre a minha juventude e a das minhas filhas e netos; não tínhamos internet ou celulares, a comunicação era cara a cara, por cartas, telegramas ou telefonemas. Não havia como enviarmos imagens a não ser que fotografássemos, mandássemos revelar e, posteriormente, as enviássemos via Correios.

A ausência de tecnologia nos ditava um ritmo bem mais lento que o atual, o que nos proporcionava tempo para diversas atividades que a juventude tecnológica e virtual desconhece.

Amigos eram pessoas presentes e companheiras, não tínhamos como dar likes, por isso as curtidas vinham em forma de vivências, entre as travessuras ilegais como roubar placas de trânsito ou de nome de Ruas para as pendurarmos nos quartos, ou nos aventurarmos ao dirigir sem carteira de motorista e darmos cavalos de pau nas avenidas, ou mesmo fabricarmos lança-perfume para o carnaval. 

Outras vezes partíamos para a fazenda e passávamos na venda do Nardo, nos embriagávamos e íamos tocar o terror acordando os colonos com diversos tiros na madrugada. Quando a gasolina estava pouca, arrombávamos o barracão que ficava na sede da fazenda e enchíamos o tanque da Perua Rural para zoarmos a noite toda. Ao amanhecer as consequências nos alcançavam, mas era tarde, já tínhamos nos aventurado no mundo da marginalidade burguesa, que apenas “rouba” dos pais porque eram apenas artes de adolescentes mimados e protegidos, nada grave.

Adolescência, bebidas, carro e armas de fogo, tudo para dar errado e jamais tivemos um acidente, ninguém nunca se machucou.

Nas noites frias de julho, ao percebermos que o cafezal sofreria com as geadas e que o prejuízo seria grave, cercávamos os cafezais com pneus e os incendiávamos, assim o estrago não era tão grande e preservávamos a safra praticamente intacta. Corríamos a noite toda de um lado para o outro, de Jeep, cuidando das fogueiras enquanto a fumaça fazia seu trabalho. Também os regávamos quando necessário, quando a fumaça dos pneus não era o suficiente.

Claro que tudo isso era pura diversão e que apenas os adultos e o pai do meu amigo, que era o dono da fazenda, estavam realmente preocupados que o seu ganha-pão fosse destruído, mas para nós tudo aquilo era pura diversão. 

Semana de prova no Colégio Objetivo (chamado Alto Padrão), era a vez dos remédios para ficarmos acordados, tomávamos um remédio de nome Reativan, que nos fazia permanecermos acordados por 24 horas. Começávamos a estudar logo que chegávamos das aulas e só parávamos no momento de irmos às provas. 

E tudo o que não tínhamos estudado diariamente era visto numa única noite, assim, fazíamos as provas e imediatamente as informações recebidas se apagavam. Tudo à moda da juventude transviada que se recusava a andar nos padrões sociais que nos eram impostos.
Pensar em religião ou em Deus era algo que não passava em nossa cabeça nem de longe, no máximo sabíamos o Pai Nosso e o rezávamos eventualmente, por outro lado, conhecíamos bem as discotecas, os motéis a céu aberto e as zonas do meretrício.

Pouco à frente dessa época havia dois senhores que, quando tiravam férias e viajavam para a praia, me pediam para tomar conta das suas casas. Sempre diziam que queriam que eu movimentasse a casa, que levasse meus amigos para que as pessoas percebessem, pelo movimento, que havia gente lá. Costumavam deixar a dispensa cheia de comida e me autorizavam a comer o que tivesse, à vontade.

Com isso, minha turma sempre me acompanhava nas madrugadas de vigia. Jogávamos baralho e, na casa mais chique, uma mansão de um arquiteto, nos divertíamos na piscina com escorregador, no salão de jogos ou na cabine de som. Fazíamos pratos saborosos com o mantimento que encontrávamos na dispensa e passávamos a noite nos divertindo.

Uma vez que estava tomando conta da casa desse arquiteto, um parente dele entrou na casa sem me avisar e eu o encontrei perto da dispensa quando encostei a cartucheira em sua cabeça. O homem ficou transparente de susto, foi muito engraçado. Infelizmente rompi a amizade com um dos caras que me acompanhava nessa vigilância e, num ato estúpido, rasguei todas as fotos dessa época. Hoje não tenho nenhuma recordação tangível dessa aventura, ficaram todas apenas na minha memória e em meu coração.

Estudei no Colégio Objetivo tanto no período da manhã, onde era tudo muito rígido, quanto a noite, onde a anarquia corria solta. Saíamos quando queríamos, assistíamos as aulas que quiséssemos e todo mundo fumava dentro das salas de aula: alunos e professores.

Meu forte nunca foi o estudo, achava que a vida passava lá fora enquanto estava trancado aprendendo o que jamais iria usar na vida, grande e grave equívoco, pois o que importava nem era tanto às matérias, mas aprender a disciplina, a constância e a perseverança.

Algumas épocas fazíamos serenatas para as meninas da turma quando as encontrávamos em casa, o que na época já era bem difícil, já que tinham rodinhas nos pés. Algumas vezes as mães delas eram quem usufruíam da boa música e, eventualmente, enquanto cantávamos, sem saber, para a mãe de alguma delas, a “mina” chegava da rua e descobríamos que estivéramos cantando em vão e desperdiçando o nosso repertório de pavão.

Na minha cidade os carrinhos de lanche eram conhecidos como Bolota, já que o primeiro carrinho de lanche que surgiu se chamava assim. Um deles ficava ao lado do cemitério do centro, então, às vezes, passávamos a madrugada levando altos papos e nalgum momento comíamos um belo, enorme e suculento lanche em companhia dos amigos e dos mortos do outro lado do muro.

Quando havia algum baile do Clube de Campo da Franca, também saíamos de lá e passávamos no Bolota ou íamos comer canja num lugar chamado Canjão, mas a preferência era do lanche, pois o amanhecer com gosto de Bolota era outro nível. Normalmente saíamos para o baile e voltávamos todos juntos, poderia até rolar uns beijos nalguma “mina” do baile, mas ninguém ia embora sem a turma.

As narrativas da minha juventude, não estão em sequência cronológica e nem especifico a turma de amigos que participaram das diversas aventuras, mas eram mais de uma turma. O que descrevo são de três turmas diferentes e em épocas distintas, cada qual com seu próprio estilo.

Quando algum filme famoso era lançado, viajávamos para Ribeirão Preto para assisti-lo, pois até chegar em Franca demorava. Lembro-me que fomos assistir “Os embalos de sábado à noite” e “O último tango em Paris” em Ribeirão Preto e aproveitamos para passear pela cidade. Nessa época não havia Shopping Center.

Muito antes dessas aventuras, bem no comecinho da minha adolescência, havia um clube aqui chamado A.E.C. e praticamente todos os finais de semana havia bailes fantásticos. Eram dois salões, um no andar superior, enorme, e um no andar inferior, um pouco menor. Os bailes eram em cima, já no piso inferior ou térreo ficava a pista da discoteca.

Consegui um emprego não remunerado de D.J. da discoteca, mas somente nos dias dos bailes. Na cabine de som tínhamos dois gravadores de rolo Akai, dois toca discos e dois tape decks gradiente, duas unidades de potência, um amplificador e um mixer Quasar, dois fones de ouvido e um microfone.

Além disso o som de dentro da cabine era separado do som do lado de fora, a cabine era uma grande caixa com isolamento acústico com um retângulo de vidro de fora a fora, por isso poderia ouvir o som que quisesse dentro da cabine que não interferiria no som da pista.

Tradicionalmente, nos bailes as músicas tocadas na discoteca eram lentas para que os casais pudessem ter seus momentos românticos e separados da agitação da banda do salão de bailes.

Como não tinha idade para frequentar bailes e havia um comissário de menores na porta, conhecido como “doutor das  bicicletas”, sempre entrava pelos fundos e me “escondia” na cabine até o final do baile. Quando tudo terminava, era servido uma deliciosa canja de galinha no salão da discoteca, as pessoas as compravam e se assentavam às mesas enquanto eu providenciava o som ambiente para o final da noite, que na verdade ocorria ao amanhecer.

Já na infância, por volta dos meus oito anos, meu primeiro trabalho foi vendendo esterco. Junto com um dos meus primos, seguíamos as carroças que eram fartas nessa época e íamos pegando merda com a mão, literalmente. 

Os cavalos defecavam pelo caminho e nós, que andávamos logo atrás, íamos juntando a matéria prima do nosso negócio para vender às famílias que precisavam de esterco fresco para pôr nos vasos de plantas ou nos jardins.

Na rua Madre Rita, que fica abaixo do Clube da Francana, era onde mais encontrávamos nossos fornecedores puxando as carroças e nos dando dinheiro em forma de esterco. Pegávamos uma sacaria de juta, aquelas que os fazendeiros colocam o café colhido e partíamos para a colheita de estrume.

Não tínhamos nojo algum dos dejetos dos cavalos, nem luvas usávamos e até achávamos cheirosos e nos divertíamos, enquanto torcíamos para que os cavalos nos dessem a “mercadoria” em abundância.

Quando o saco estava cheio, perdoe-me o trocadilho, saíamos a bater nas casas para vender nosso produto fresquinho. Era muito fácil vender nosso fertilizante, todos que tinham plantas os comprava.

Saco vazio e era hora de seguirmos as carroças novamente, afinal, éramos crianças e não havia como carregarmos mais de uma sacaria de juta cheia de estrume de uma vez só.
Quando fiz uns 10 anos, montei uma caixa de engraxate e fui à luta. Se antes servia a clientela fornecendo fertilizante, agora os serviria deixando seus calçados brilhantes e charmosos.

Era uma época que não havia leis proibindo as crianças de trabalhar, o Governo Militar não interferia na vida familiar e tudo era bem mais saudável que hoje, éramos muito mais felizes que as crianças contemporâneas.

Poderíamos começar a trabalhar como engraxate e, posteriormente, de guarda mirim, o que só nos beneficiava para o futuro, mas hoje, infelizmente, na “democracia”, é proibido. 

No centro havia uma bancada onde ficavam os engraxates e os meninos que davam sorte eram contratados pelo dono do lugar para trabalhar lá, ficavam sentados aguardando o próximo cliente, sem a necessidade de bater de casa em casa oferecendo seus serviços.
Essas bancadas eram como uma arquibancada de dois degraus, o degrau debaixo tinha dois pés de ferro onde os clientes colocavam os pés, já no de cima, o cliente ficava sentado confortavelmente lendo os jornais, enquanto os engraxates cuidavam dos seus calçados. Mas minha realidade era diferente, andava oferecendo os serviços de casa em casa.

A vantagem que levava sobre os engraxates do centro é que quando encontrava uma casa que precisava dos meus serviços, me davam vários calçados para engraxar: sapatos, botas e polainas. Isso fazia com que a minha meta de rendimento diário fosse atingida, cerca de uns 5 reais em dinheiro de hoje. 
Na Rua Couto Magalhães, mesma rua que morava, havia um fazendeiro riquíssimo, o conhecia como Coronel Jacintho, era um homem formidável, sempre que eu passava ele me recebia com um grande e simpático sorriso. Me chamava de “meu amigo” e me convidava a entrar em seu enorme alpendre para engraxar suas dezenas de botas, sapatos e polainas. 

Passava horas conversando com ele enquanto engraxava seus calçados, meu maior pagamento eram nossas conversas, para ser sincero, engraxaria seus calçados até de graça só para poder passar as tardes conversando com ele. Seu nome? Ismar Jacintho, meu amigo até os dias de hoje, mesmo fazendo alguns anos que eu não o veja. 


Quando estava com uns 20 anos, meu irmão montou a melhor boate da cidade, Algarve, onde vivi muitas aventuras por um ano, pois logo em seguida me casei e tive que abandonar a meninice.

Tantos momentos, tanto de êxtases, como de inferno astral pela ânsia em desvendar o futuro: 

Será que serei bem-sucedido? 

Será que encontrarei a mulher da minha vida?

Será que me casarei?

Será que dará certo?

Será que terei filhos?

Será...será...será...?

E a busca pelo transcendental me torturava querendo saber os porquês da existência: por que nascemos, por que morremos, por que existimos, por que sofremos, por que essa diferença imensa de uma pessoa para outra? Pobres e ricos, prósperos e miseráveis, doentes e saudáveis.... Tudo me impulsionando para a filosofia e para a teologia.

Muitas histórias, muita vida, coisas que os olhos não veem quando um jovem nos olha hoje e enxerga somente as rugas e o cansaço adquiridos na caminhada iniciada bem antes deles nascerem. O mesmo que acontecia conosco ao contemplar nossos pais e avós.

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